domingo, 28 de agosto de 2011

Cultura vai juntar situação e oposição?

O “Diálogo Cultural”, realizado pela Regional do Minc Norte e Fundação Tancredo Neves na última sexta-feira no Cine Teatro Líbero Luxardo do Centur , juntou na mesma mesa os deputados federais Arnaldo Jordy (PPS) e Claudio Puty (PT). Pertencentes a bancadas de partidos opositores no Estado, Jordy e Puty afinaram o discurso em prol da Cultura da Amazônia e do Estado.

O discurso comum é a defesa do chamado “Custo Amazônico”, um princípio defendido e aprovado na II Conferencia Nacional de Cultura em Brasília pelas bancadas de representações regionais. Votação fortemente influenciada por representantes paraenses nos colegiados setoriais de cultura - estruturas de consulta institucionalizadas ao longo das gestões de Juca Ferreira e Gilberto Gil, que hoje compõem uma política de Estado, firmada com a Lei do Plano Nacional de Cultura, aprovada em dezembro passado.

A discussão não é nova. Segundo dados registrados pelo Minc há cerca de três anos, apenas 0,43% dos recursos da Lei Rouanet ficam na região, enquanto mais de 70% potencializam os investimentos culturais na região Sudeste do Brasil. Esse quadro já mudou, talvez os recursos no Norte tenham chegado a algo em torno de 1,5%, o que ainda está muito aquém das dimensões grandiosas da região.

O burburinho em torno dessa desigualdade regional não chega a sensibilizar representantes setoriais de outras regiões que ocupam os colegiados e o Conselho Nacional de Políticas Culturais (CNPC), órgão formado por representantes dos colegiados e de outras instancias e que também fazem parte da institucionalização da cultura.

Tanto é assim que na última reunião do Colegiado Setorial de Música, em junho passado, coloquei a questão em pauta. Ela foi aprovada não como um princípio de isonomia da região Norte, mas indiretamente pela busca da igualdade entre as regiões, o que já seria um avanço significativo em relação a realidade que temos hoje. A questão, dessa forma, foi aprovada como prioridade nas diretrizes setoriais naquele colegiado. Mas não sem antes ser ridicularizada por membros do colegiado de outras regiões.

A questão do “Custo Amazônico” foi levada ao CNPC e lá, segundo Isaac Oliveira, um dos dois representantes do Pará no CNPC, pertencente ao Colegiado Setorial de Culturas Populares, ele foi vencido. Os argumentos dos conselheiros contrários é que não existem dados suficientes que comprovem que a região necessite ser tratada com diferencial em relação às outras regiões do país.

Esse possível dispositivo deveria estar contido na lei Procultura, que redefine os parâmetros e métodos de financiamento da produção cultural do País. O Procultura vai substituir a Lei Rouanet e incorporar outros dispositivos de financiamento, sendo o principal deles o Fundo Nacional de Cultura. O documento acaba de sair do CNPC e está tramitando nas comissões parlamentares antes de ser posto a votação no Congresso Nacional.

Se aprovada do modo como está hoje redigida, a proposta define que a renúncia fiscal, principal mecanismo de financiamento através da Lei Rouanet, será somada ao mesmo volume de recursos provenientes do orçamento do estado para multiplicar os investimentos no setor.

A luta das lideranças culturais nesse momento é para que o chamado “Custo Amazônico” seja incorporado ao texto nas tramitações dentro do Congresso. Para isso, Puty e Jordy, que compõem comissões diferentes, por onde o texto deve tramitar, acordaram a possibilidade de realizar audiências públicas no Pará e na Amazônia onde seriam discutido e argumentado de melhor forma o principio do investimento necessário para o desenvolvimento do potencial cultural da região.

Seria a Cultura o tópico capaz de juntar oposição e situação no Pará em torno de uma política comum de desenvolvimento do Estado e da Região? Coisa difícil de dizer na política paraense. Arnaldo Jordy esteve reunido com a Ministra da Cultura na presença de Lucinha Bastos, atual diretora de integração da Fundação Cultural Tancredo Neves. Jordy e Lucinha disseram ter boa acolhida na proposta. O MINC já tinha criado no ano passado um edital de pequenos projetos para a Amazônia, que desburocratizam e estimulam a pequena produção. Aliás, um dos argumentos de tão poucos recursos na Amâzonia é a falta de projetos consistentes e bem elaborados. Argumento que ora vai cair em descrédito. De qualquer forma, a classe de produtores e artistas tem muito o que rever nesse processo de transição. E tem que se preparar para um novo momento.


Custo amazônico?


Na minha opinião, a primeira coisa que deve mudar no discurso atual é o termo “custo”. O que se deve propor nesse momento é o desenvolvimento de um mercado cultural na Amazônia. Já está mais do que claro que as manifestações culturais de todo o tipo e os talentos em todos os setores, seja na música, no cinema, nas artes visuais, na dança, enfim, nos mais diversos segmentos da produção cultural brasileira e universal, existem e tem potencial. Potencial que na Amazônia, conciliando os fatores geográficos e históricos do país, encontra terreno fértil ao desenvolvimento de tal indústria.

Lembro os argumentos expostos no primeiro artigo publicado neste blog há três anos, quando falava da importância da Economia da Cultura e Economia Criativa para o Brasil, principalmente diante da atual configuração econômica mundial.

Quando foi escrito meu artigo, por circunstância da primeira crise econômica do século 21, disseram que era ingenuidade minha afirmar que o império americano estava em decadência. Hoje, por mais distante que essa realidade possa estar, ela é ainda mais factível do que naquela época.

No entanto, o primeiro desafio desse desenvolvimento é justamente mudar a nossa mentalidade. A incorporação do termo “custo” pelas lideranças culturais e políticas que começam a se apropriar desse discurso, e em alguns casos, fazendo dele bandeira política, indica facilmente a nossa inclinação mental e nos mostra como ainda pensamos pequeno. “Custo” em empreendedorismo é aquilo que onera o produto. Que o torna caro. No entanto, somando os valores sociais, simbólicos e ambientais presentes na Amazônia, os recursos aplicados aqui são, pelo menos na cultura, evidentes investimentos.

O desenvolvimento de uma economia da cultura tem potencial estratégico na afirmação de uma nação. Em primeiro lugar, sim, pelo seu fator simbólico de afirmação da identidade cultural deste país sobre os demais ou aos demais -- sem necessariamente imposições imperialistas como assim o fez o hoje arriscado império americano. Em segundo lugar pela dimensão econômica de seu desenvolvimento, que é estratégica diante do fator social e ambiental, uma vez que a difusão da cultura cada vez mais reduz impactos através do meio digital.

Os modelos americanos de megaeventos, que também promovem grande impacto ambiental, podem ser adaptados à nossa realidade, buscando tecnologias de produção próprias em parceria com os vizinhos americanos ou brasileiros mais avançados nesse processo. Poderemos enfim potencializar o turismo histórico e natural, o turismo cultural. Sabe aquela música “Vou destruir o Ver-o-Peso (...) Coitada da Cidade velha, que foi vendida para Hollywood” ?? Não precisa ser assim. Mas alguém tem que fazer um dia um filme digno da dimensão do que foi a Cabanagem, por exemplo. Seremos nós?


Simbolismo e política, teoria e prática


Chegou a hora do Brasil e da Amazônia assumir seu protagonismo. Não vamos desenvolver Economia da Cultura com a mentalidade de “pequenos projetos culturais” apenas. A Lei do Procultura define algo muito importante para todos os que produzem cultura na região e precisam sobreviver para continuar produzindo. Mas é preciso um programa específico, como o que já esta sendo pensado e proposto pela regional do Minc, como um PAC da Cultura para a Amazônia.

É preciso aplicar nesse momento os princípios econômicos de Keynes para desenvolver essa economia. É preciso investir em infra-estrutura: teatros, gravadoras, companhias de teatro, fábricas de instrumentos, estúdio de cinema, na recuperação do nosso centro histórico, em Educação - que na Economia da Cultura é tão fundamental quanto uma Transamazônica no PAC da economia tradicional.

Não dá para pensar só no meu disco, na minha peça, no meu festival etc. É preciso identificar os investidores potenciais, os empreendedores que já tem know how e experiência e que podem conduzir esse processo em seus setores. Àqueles que podem achar que a indústria fere a magia, o encanto ou a mística, ou a identidade da cultura local, é preciso dizer mais. O modelo de desenvolvimento, nós vamos escolher com participação. A cultura muda, isso é fato. A cultura sobrevive, se adéqua, se transforma. E isso dependente da nossa disposição para digerir e dirigir as políticas públicas. Depende de nós. Nós podemos?

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O lado dos Porongas

Passam alguns minutos das 10 da noite quando chego ao Parque dos Igarapés, com minha amiga Karine Pedrosa, para o lançamento do Prêmio Curupira de Música Independente, uma iniciativa que promete marcar um novo momento da música do Pará, juntamente com outra série de acontecimentos importantes. Parece que é cedo para as festas no Parque. Los Porongas estão passando o som. Eles são, sem dúvida, a principal atração para os indies e roqueirinhos que compareceram à festa. Nem tantos assim. No geral o público é bem diverso e disperso, o que valeria mais tarde a sentença de Karine de que Belém vive uma revolução burguesa tardia. A sentença fica por conta da interpretação dos leitores.

Um amigo ligado na produção do evento me dá a dica, o furo da noite. João Eduardo, guitarrista dos Porongas, está de saída. Os Porongas são uma daquelas bandas em que seus integrantes vivem como irmãos e tal cumplicidade gera um som tão novo quanto autêntico e honesto. “Entrevista ele. É um furo”, garantiu meu amigo. Eu compro a ideia e na sequência já me vejo no chalé onde eles estão hospedados.

Poucos minutos depois, estou sentado na cama do vocalista Diogo Soares. Magrão, o baixista, e Anzol, o baterista, estão cada um em uma das quatro camas que ocupam o único cômodo no térreo do chalé. Karine, que insistiu em vir comigo, está sentada na outra, dedilhando o violão de João. “Diz que eu sou a nova estagiária da Pro Rock, prometo que não vou atrapalhar”, disse ela, empolgada com a ideia de acompanhar a entrevista.

O mote da conversa não é a saída de João, mas a mudanças que culminaram com o momento do segundo disco, “o segundo depois do silêncio”, contemplado com o Prêmio Pixinguinha, da Funarte. A produção foi conduzida pela banda tendo a frente das gravações João, que está de saída justamente para trabalhar a perspectiva nova de compositor e produtor. Após quatro anos em São Paulo com a banda, João disse que sai com as bases firmadas para o novo desafio. Carlos Gadelha o substituirá.


Gravado em São Paulo, ora em casa, ora em estúdios de músicos amigos, o disco foi lançado em fevereiro no Acre. Ainda não está nas lojas, mas vai chegar através do selo Baritone e da distribuidora Tratore. Em junho o disco foi disponibilizado pela banda para download. “Penso que é uma atitude de elegância, condizente como o nosso tempo. Não vamos ganhar dinheiro com o disco, podemos ganhar com os shows, com merchandisign”, explica Diogo, ainda tentando se adaptar às mudanças estruturais do novo empreendimento.

“Estamos sentindo a necessidade de viajar com um produtor, estamos trabalhando com uma equipe de produtores amigos. Com assessoria de imprensa da Renata Dornelles, que está dando super resultado. O disco já foi resenhado na capa do caderno de cultura do Correio Brasiliense, no Zero Hora de Porto Alegre, e em outras capitais do País. Só não saiu na Folha e no Estadão porque ainda não chegou nas lojas”, prossegue Diogo.

Esse novo momento dos Porongas parece conciliar, como em uma das canções do novo disco, os dois lados de uma mesma moeda. A paixão e a busca de um profissionalismo. “Não existe um emprego que eu queira mais nesse momento do que ser vocalista dos Los Porongas”, confidencia Diogo.

A profissionalização, aliás, está na base das mudanças que deram o resultado estético desse novo disco. Magrão é o único que não largou o emprego diurno, ainda trabalha no banco. Mas vive a música muito mais. Pela primeira vez teve aulas de contrabaixo. Anzol, que já era o principal instrumentista quando a banda saiu de Rio Branco, há quatro anos, também tem se dedicado ao estudo do instrumento.

“O que mudou basicamente é que há quatro anos nos éramos todos funcionários públicos. E hoje nós somos muito mais músicos. Não tem como você não evoluir se dedicando exclusivamente a isso. Querendo apenas isso como sua profissão mesmo”, conta Anzol.

O processo ajudou. No primeiro disco, lançado pelo selo Senhor F, foi gravado em Brasília, com Phelipe Seabra, a banda tinha, basicamente, baixo, bateria e guitarra. Neste novo trabalho, sem a imposição do relógio no estúdio, ousaram gravar viola caipira, teclado, programações e percussão. “É diferente gravar em casa. Você para, fuma um baseado, pensa mais na música, volta para gravar”, diz Anzol.

Mas claro que não foi só o processo. Mudou muita coisa porque são pessoas e músicos diferentes hoje. Ver e conviver com outros músicos, como eles tocam e cantam é uma citação de Diogo, que se refere a Tulipa Ruiz e Hélio Flandres, do Vanguart, entre as pessoas que lhe ajudaram a entender um novo jeito de cantar. O contato com Dado Villa-Lobos, que produziu uma das músicas do disco, também colaborou com isso.

“O silêncio...” parece um grande experimento onde os Porongas exercitaram e evoluíram o seu jeito de fazer música.



Paixão versus política


A paixão, o outro lado da moeda. Quando Dado Villa-Lobos soube que eles largaram tudo no estado de origem para tentar a vida como músicos em São Paulo, disse: “pensei que não existisse mais esse tipo de malucos”. Essa paixão é o que os motiva. Mas tem também as desilusões, que são sempre boa munição para canções.

A paixão se contrapõe à política. E por isso mesmo eu titubeio em falar no assunto que há cinco anos parece dominar a cena independente brasileira, desde o surgimento do Circuito Fora do Eixo, ao qual a banda esteve muito ligada no início. Mas Diogo parece não se incomodar. Reconhece a importância e fala com segurança das ações do FDE. Cita também o programa Conexão Vivo, que ele considera a melhor plataforma de circulação do país hoje. Mas garante que o caminho na música vai além disso.

“Sempre penso que a política é uma força de conservação, enquanto que a arte é uma força de transformação. Toda situação política exige tato para você lidar com o poder, com um engajamento necessário. E a gente quer é fazer música. A gente quer tocar.
A gente tem se pautado nas parcerias. Na vontade das pessoas se conhecerem, de confiarem e quererem fazer as coisas juntas”, conta ele.

A fala mansa e segura e uma atitude que não demonstra nem ressentimento nem empolgação parece camuflar a crítica mais dura que vem a seguir. “A gente mesmo é bem outsider disso. Vivemos nos quatro anos que estamos em São Paulo bem longe do Fora do Eixo, e o próprio circuito não fez muita questão de saber como se relacionar com os Porongas. Às vezes fico muito temeroso com esses discursos coletivistas, principalmente quando há uma exclusão velada. Só não incomoda mais porque a gente está fazendo o que a gente vive, o que a gente escolheu”.

Após a entrevista, durante o show, quando Diogo tocou “Fortaleza”, a climática faixa de seis minutos que abre o disco, mandou um recado: “Essa nós fizemos por causa de certas exclusões veladas que existem na cena independente”. Na faixa ele instiga: “Como é que vão dizer o que não é e você vai ficar calado?”. E como se estivesse reafirmando o papel da arte sobre a política quando pergunta: “Quem vai poder plantar as flores que nascem na cabeça?”.

Com crítica ou sem crítica, o fato reconhecido pelo amadurecimento dos músicos é que, “no começo era tudo mais desarticulado. Hoje em dia o deslumbre com um falso glamour é muito menor.” E isso se deveu a toda essa movimentação da cena independente, com a qual, sem dúvida, o Circuito colaborou muito.

O papo também não poupou a nova Ministra da Cultura, Ana de Holanda, que, segundo Diogo, parecia não entender o que estava sendo feito antes dela chegar. “Isso é comum nas políticas culturais no país inteiro. Aliás, não só nas políticas culturais. Entra um novo governante e interrompe as políticas que foram construídas com a comunidade. Acho que isso é uma mazela da nossa democracia”.

Diogo garante que é um direito do Fora do Eixo reivindicar uma política que ajudou a construir com a participação das pessoas. Por outro lado, as políticas culturais ainda permitem prêmios editais como o Pinxiguinha. “Talvez isso [o encerramento de um ciclo na política pública] instigue ainda mais as bandas a fazerem os seus corres independente de apoio de governo”, opina Anzol.

Mas não dá para se iludir. Não existe maneira de se manter em São Paulo tocando na Augusta. “O custo de vida de São Paulo é muito alto. Comparável a Manhattan. A cena independente não está tão estruturada a ponto de garantir a sustentabilidade das bandas”, diz Anzol. “Não existe fórmula”, completa Diogo. De qualquer modo, “a vontade do cara tocar guitarra e montar uma banda sempre vai existir”. As lições de oito anos de carreira e quatro morando em São Paulo continuam: “O que você precisa entender é que a gente vive num mundo capitalista e se você quer viver de música você precisa se adequar a seu tempo.”


Não tem nem meia hora de gravação e o papo parece que durou muito mais. João chega e confirma tudo que foi dito sobre a sua saída. Depois da confraternização com os músicos de Saulo Duarte, a gente se despede para a banda se concentrar antes de ir para o palco. No caminho de volta para a festa, Karine pergunta: “Só uma dúvida de estagiária, naquela parte em que ele diz que fumava um baseado entre uma gravação e outra você transcreve exatamente o que ele disse?”.

Voltamos e o público tinha aumentado. Até as 7h da manhã muitas pessoas se confraternizaram ao som de 12 curimbós ritmando o swingue da Música do Pará.


Quebrando o Silêncio


“O segundo depois do silêncio” começa com “Fortaleza”. Climática, a faixa tem seis minutos de uma poesia meio ressentida, meio magoada. Os efeitos e os arranjos são grandiosos. O clima é de expurgar, de liberar certa raiva: “No lugar de onde nunca vim / que amigos já não sei quem são? / Do que eu me esqueci por indelicadeza?”.

“Cada segundo” começa com belas frases de guitarra, sob um arranjo que mantém o clima etéreo dos teclados e efeitos. Melodias belíssimas duelam com a poesia passional de Diogo. E o expurgo continua: “O mar do medo é uma gota pra se navegar”.

O clima progressivo segue com “Bem Longe” e a grandiloqüência dos arranjos já quase demonstra cansaço, quando “Dois lados” nos salva. Não adianta. É um disco para ser contemplado e se você não tiver disposição para desvendar as melodias e letras, então não perca seu tempo. É um disco para ser descoberto. “Quando o barco balançar / Você vai permanecer / Eu pulo”. Os metais e a viola caipira no arranjo de “Dois lados” faz dela uma das melhores do disco.

As faixas são longas, mas as letras e as melodias grudam, contrariando as formulas de bolo das canções radiofônicas. A comparação com a Legião Urbana é inevitável nem tanto pela estética, mas pela postura. E Dado Villa-Lobos imprime sua marca com a produção de “Sangue novo”. Durante os solos de guitarra parece que estamos diante dos melhores momentos do pós-punk brasileiro. “Silêncio” é a música de trabalho, tem menos de quatro minutos e virou o primeiro clipe.

No próximo destaque, Hélio Flandres empresta seu jeito blazé para tornar “Mais difícil” uma balada blues de doer no coração. Nessas horas a gente pensa que muito das críticas a alguns emergentes e independentes artistas está contaminada com a política e menos tem haver com música. E dá para entender (lembrar?) onde reside o sentimento que nos provoca que nos instiga na música.

E já não bastasse tudo isso e o que ainda nos resta até chegar à última das 12 faixas do disco, Mauricio Pereira (Ex-Mulheres Negras) é mais um a abençoar a escolha dos Porongas pela música. Ele encerra o disco com a participação em “Longo Passeio”, onde finalmente a melodia já não precisa nem de letra para te pegar. Se fosse um “papapá” fácil de qualquer banda de power pop seria bem diferente. Mas não se trata disso. Não é um disco fácil. É um disco raro.


*Nicobates foi ao lançamento do Prêmio Curupira Antenado a convite da organização do evento. As fotos são de Nayane Muniz e de Thiago Araújo e foram fornecidas pela produção do evento.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Ecad: Máquina de fazer dinheiro

No ano passado o Ecad arrecadou algo em torno de 350 milhões de reais. É uma arrecadação muito grande, dizem, e continua crescendo a cada ano. Mesmo tendo que apurar cerca de 80% de suas receitas por via judicial, o Ecad é uma máquina de fazer dinheiro. Tem a legislação e o preceito de legitimidade a seu lado, pois as associações que o mantém, com seus próprios recursos, são entidades que representam os compositores e autores brasileiros. Estas associações, que são as representantes legais dos compositores, doam parte significativa de suas receitas para manter o Ecad.

O Escritório Central de Arrecadação e Distribuição do Direito Autoral (Ecad) cumpre a função que o autor sozinho não poderia cumprir. O de aferir e recolher os direitos pela execução de sua obra. Imagine o autor, sozinho, indo de bar em bar, de rádio em rádio cobrando o seu legítimo direito pela execução de sua obra. Seria algo difícil, você não acha? Mas ele pode fazer isso se quiser. É permitido e facultado por lei.

Mas porque recolher direito autoral? Por que tentar ser remunerado se a gente aprendeu nas ultimas décadas que não era possível ganhar dinheiro com direito autoral? Houve muitas distorções no meio do caminho, mas uma coisa é certa: bares, veículos de comunicação, academias, lojas e muitos estabelecimentos comerciais ganham dinheiro vendendo serviços ou espaços publicitários que se utilizam da música como atrativo. Você escuta a rádio pela música, mas a uma rádio se aproveita de que você a ouve por causa da música e vende espaços de publicidade. Assim, é justo que você ganhe pela utilização de sua obra.

A cultura da distribuição gratuita da internet e a falta de mínimo senso profissional dos compositores da geração digital, principalmente aqueles de regiões periféricas onde o mercado cultural ainda não se estabeleceu, faz parecer uma coisa absurda pensar em ganhar dinheiro com direito autoral. Mas, como se pode ver, o dinheiro existe. Essas execuções geram dinheiro e alguém está ganhando em cima dessas obras. Se você não recolhe, outros recolherão por você. Há alguns meses a impressa noticiou o caso de um espertinho que se disse co-autor da trilha sonora de vários filmes. A associação a que ele se filiou acreditou (ou foi conivente, isso ainda está sendo apurado) e ele recebeu um cheque de R$ 110 mil por obras que nunca compôs.

Enquanto isso, autores paraenses que cresceram na cultura da distribuição digital, foram procurados para recolher seus direitos através de uma associação e nunca tiveram interesse em se filiar. Escuto muitas queixas de músicos que acreditam que não tem nem tempo nem dinheiro para cumprir a burocracia de recolher seus direitos autorais. E tem artista que tem música em filme da Globo. Os direitos autorais retidos são garantidos por cinco anos. Depois disso, eles serão redistribuídos pelos maiores arrecadadores integrados ao sistema. A CPI do Ecad tem apurado que os dirigentes do órgão trabalham com metas de arrecadação e ganham polpudas comissões em cima dessas metas.

Autores independentes como Madame Saatan, Elder Effe e outros paraenses já cumprem ações básicas de informar o Ecad quando tocam em festivais ou quando tem sua música executada em rádio ou TV. Isso, às vezes, garante que seu dinheirinho seja recolhido e some no caixa da empresa, que deve ter faturamento pra se manter.

Converso com compositores novos que dizem não acreditar “nesse papo de associação” e que se recusam completamente a se associar para qualquer fim. Cheguei a ouvir deles que deveriam ganhar pela execução de sua obra, mas isso deveria ser automático, sem o envolvimento do artista. Seria ótimo se fosse assim, mas a vida não tão fácil quanto parecia quando a gente pegou o violão pela primeira vez pra fazer música.

Pena Schimit, uma referência para qualquer profissional de música no Brasil, indie ou mainstream, disse em artigo recente que o artista deve estar de olho no seu direito autoral. É o mínimo. Por isso, é bom entender como funciona o sistema de arrecadação e distribuição de tal dinheiro.


Enquanto isso, na Câmara dos Deputados

Em junho estive na reunião da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados em Brasília. Foi a última reunião antes da instauração da CPI do Ecad. Estavam presentes na mesa, vários estudiosos advogados que denunciaram práticas recentes do Ecad. Estava na mesma mesa também o Leoni, aquele cantor pop que tocou com Kid Abelha e fez parte da banda Heróis da Resistência e que hoje aparece em um monte de revistas como referência de artista que sabe lidar com seu público na era digital. Leoni integra um movimento de artistas que se chama “A Terceira Via do DA”. Leoni disse que leva uma vida confortável graças aos direitos autorais que lhe são repassados por suas obras.

Lá também estava Téo Ruiz, paranaense que integra o Fórum Nacional da Música (FNM), movimento fortalecido pelas ações da gestão de Gilberto Gil e Juca Ferreira frente ao Ministério da Cultura. Teo Ruiz escreveu um livro chamado “Contra a Indústria”, em que prega formas modernas de gestão de carreira longe do “esquemão” da Indústria Fonográfica. Lá estavam os deputados, a superintendente do Ecad, Glória Braga, e artistas famosos que defendem o modelo atual, entre eles Sandra de Sá e Walter Franco. Esses não estavam na mesa e ficaram somente até a hora de fazer suas falas e posar para as fotos. Depois pegaram o avião de volta pra São Paulo e para o Rio.

Nenhum deles, absolutamente nenhum deles, se manifestou a favor da extinção do Ecad. É pouco provável portanto que qualquer reforma da Lei de DA diga que o autor não deve receber pela execução de sua obra. O que todos querem é reformular a lei e/ou regulamentar os princípios que medem a arrecadação. A atual Ministra da Cultura, Ana de Hollanda, já dizia que existem na lei atual mecanismos de aferição, de cessão de direitos e tudo o mais que a legião de produtores, autores e agentes digitais prega. Ou seja, não precisaria de reforma, basta que os interessados busquem fazer valer os seus direitos.

A Funarte chegou a criar um edital para premiar “propostas alternativas” ou ‘inovadoras” de gestão de direitos autorais. Não sei se vingou. É verdade que a lei permite que você não se associe e que você recolha direitos autorais sozinho. Mas é impossível se concentrar em sua carreira e fazer isso ao mesmo tempo. As associações existem para isso e ganham para isso, e ganham em cima do que elas arrecadam, por isso, o autor não perde nada. O investimento dele já foi feito quando ele compôs, gravou e divulgou seu trabalho. Esses três procedimentos juntos garantem a entrada de sua obra em um circuito comercial e logo lhe garante a arrecadação, ou deveria, mesmo que ela seja pequena.


A exceção de algumas emissoras de TV e rádio, que emitem relatórios detalhados, o Ecad recolhe por “amostragem”. Ou seja, ele aplica regras estatísticas para projetar, em cima de poucas horas de programação gravada, a execução das obras dos autores filiados. Essa é a maior distorção. A programação da rádio não segue uma ordem aleatória de progressão aritmética ou geométrica como se entendem as regras estatísticas.

Se você desconsiderar o jabá, a programação da rádio e da televisão segue a intenção dos programadores segundo suas necessidades estéticas e gostos pessoais naquele horário e naquele programa. Assim, eu posso tocar uma ou duas vezes num programa de rock e nunca aparecer numa amostragem do Ecad, porque ela foi feita em horário comercial.

Na televisão, o Ecad garante que a arrecadação é feita por obra. Toda obra executada é registrada e repassada ao Ecad em um relatório de execução. Glória Braga afirmou que existem mais de 350 mil autores registrados no Brasil mas as grandes emissoras só executam 19 mil deles. Quando ela falou isso, a platéia gritou “jabá” do lado de cá.

Mas a arrecadação pode ser pulverizada pelas emissoras regionais e segmentada por estados e municípios. Se as rádios públicas e universitárias de cada estado e município, assim como emissoras regionais de televisão, se dispuserem a trabalhar em parceria com entidades representativas, elas, que não deixam de pagar o Ecad de qualquer modo, podem contribuir ao menos para que a distribuição seja mais justa.

Já perguntei a um ex-diretor de rádio pública e ele disse: “Nós pagamos o Ecad, vá lá recolher seus direitos!”. O diretor, ex-sindicalista, sabe defender seus direitos certamente, mas não era muito preocupado com o direito do artista. Quando eu perguntei se ele tinha informado a programação da Rádio, ele disse “isso é problema do Ecad ele é que tem que ouvir a Radio e dizer quem a gente tocou!”.

Pois é, se a Radio não informar nós ficamos na mão do Ecad, que também tem seus problemas para aferir, arrecadar e distribuir. É necessário um novo pacto entre autores, suas representações, executores que ganham com a música e o poder público para tornar essa arrecadação mais justa e mais equilibrada, de modo a incentivar a produção do artista regional, aquele que não toca na Globo mas toca na TV Liberal ou na TV Cultura.

Segundo um relatório de dois meses atrás, as rádios paraenses, segundo me informou a minha associação, devem cerca de R$ 15 milhões ao Ecad. A Funtelpa, por exemplo, devia, segundo o Ecad, até o mês passado quase R$ 90 mil. Essas rádios sempre pagam porque ao contrário do exercício direto do músico, as execuções são consideradas comerciais. E o Ecad sempre leva na Justiça mesmo fazendo acordos. Mesmo que o dinheiro seja desviado dentro do Ecad, como estão comprovando as investigações da CPI.


Eu, independente também?

Você pode pensar: no meu caso, que sou musico independente, e não vivo disso, tenho outro emprego, compensa a burocracia, o gasto de energia de se inscrever numa associação para receber? Além da questão de compensar o investimento, há uma questão latente na sua possível omissão. Você ajuda a viciar o sistema se você se omite. Como cidadão e como profissional, você tem responsabilidades. Não adianta fugir delas. O Brasil está entrando em uma nova era de desenvolvimento econômico e social. A tendência é que a informalidade seja banida do mercado, e é preciso acompanhar os novos tempos.

Mesmo viciado, o sistema do Ecad é estudado por acadêmicos europeus porque seu modelo é mais justo em princípio. Só que, como o sistema é complexo e o artista não se envolve, acaba dando margem para desvios e distorções.

Na Europa, por exemplo, não existe fundo retido. O fundo retido é aquele dinheiro que é recolhido, mas não é repassado porque os autores dessas músicas não são associados às entidades mantenedoras do Ecad. No Brasil, esse fundo fica guardado por cinco anos depois é redistribuído entre autores e funcionários do Ecad como vem mostrando as investigações da CPI. Lá na Europa se sua música não é identificada na aferição o dinheiro entra no bolo de quem é. E pronto.

Mexer com o Direito Autoral hoje em dia implica em mexer em vespeiros de deputados e senadores que detém concessões publicas de veículos de comunicação de massas. Mas há uma CPI sobre o caso em curso. Por pouco e por ignorância dos músicos não emplacamos uma cadeira no Conselho Nacional de Comunicação. Isso quer dizer que mudanças são possíveis. E elas começam bem pequenas, conversando com o dono do bar que você conhece e que toca a sua música, conversando com o diretor de programação da rádio pública ou da radio universitária que você conhece. Conversando com outros artistas e outros músicos que como você passam pela mesma situação. Se organizando para uma gestão mais justa dos direitos e deveres que envolvem o exercício da profissão que você escolheu.




Fotos: Leoni, Teo Ruiz na mesa da audiência na Câmara dos deputados (1); Glória Braga, superintendente do Ecad, preparando0-se para dar entrevista (2); O poster e Malva Malvar, membros do Colegiado Setorial de Música em Brasília (3); Sandra de Sá e os artistas que defendem o Ecad na plateia da Comissão de Educação e Cultura na Câmara


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