segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Radiodifusão na Transamazônica



Boiada na BR-230
Foto de Lucivaldo Sena

Dos 46 quilômetros que percorremos de Altamira (região do Rio Xingu, no sudoeste do Pará) até Brasil Novo, mais de 20 ainda são de terra batida e poeira que levanta quando o carro passa. Mesmo se tiver uma boiada no caminho (os bois e os vaqueiros viajam por vários dias na Transamazônica atrás de pasto), a viagem não dura nem uma hora. Os boiadeiros assopram seus berrantes e a gente “pede licença” no meio do gado.
As distâncias estão diminuindo na rodovia BR-230 – obra inaugurada no governo militar que rasgou a floresta ao meio com a finalidade de promover a colonização da Amazônia. “Homens sem terra, para terra sem homens”, dizia a propaganda da época. Depois de três dias, rodando entre as duas cidades e percorrendo vicinais na “espinha de peixe”, como é conhecida por causa dos “travessões” que a cruzam a cada cinco quilômetros, percebemos que a realidade da região tem mudado. E ainda que as políticas públicas comecem a surtir efeito, muito do trabalho que hoje a torna viável economicamente se deve a ação dos movimentos sociais.
Dos agricultores familiares até o movimento religioso e de mulheres, foram eles que construíram a noção de cidadania que os habitantes da região têm hoje. Esse conceito (cidadania) também está ligado a uma área do conhecimento humano que normalmente está cerceada nos sertões e mesmo nas capitais de centros afastados do eixo econômico do Brasil: a comunicação.
Não por acaso que a região do Xingu foi a primeira a realizar um encontro regional de rádios comunitárias. Um evento que há de significar muito para o crescimento da região, mas não foi citado por nenhuma das quatro emissoras locais de TV de Altamira ou pela única rádio comercial da cidade. Os promotores do evento nem gostariam da publicidade. É que políticos e/ou empresários que usam as concessões em quase todos os municípios do Pará para defender seus próprios interesses econômicos financiam operações da Anatel de fechamento de rádios comunitárias. Ao menos essa é denúncia mais comum no Encontro.
Enquanto o presidente Lula anuncia que a Anatel não está autorizada a promover uma caça às bruxas das rádios comunitárias, no interior do Pará, prefeitos dão suporte de polícia para mega operações, que incluem até helicópteros, para o fechamento de rádios de associações. Por esse motivo também, a reunião das 14 rádios comunitárias da região da Transamazônica ocorre numa sala pequena da Casa do Trabalhador, um centro de serviços no principal bairro de Altamira, onde foi nossa primeira parada, antes de seguir para Brasil Novo para conhecer como funciona lá uma rádio comunitária na Transamazônica.

Apenas um papel de computador, impresso em preto e branco, colado na porta de vidro anunciava o “Primeiro Encontro Regional de Rádios Comunitárias”. Sem bancada decorada, sem logomarcas, banners ou qualquer outro tipo de publicidade, cerca de 12diretores de rádios comunitárias ao longo da rodovia Transamazônica ou do Rio Xingu reuniram-se no dia 5 de julho em um pequeno auditório de Altamira. Dois diretores de rádio faltaram, provavelmente por dificuldades de transporte (depois de Brasil Novo e Medicilândia, as distâncias ainda são grandes).
Sentado de frente para um notebook, Amarildo Madergan, o Arildo, um capixaba de 43 anos que vive na região há mais de 23 anos, inicia os trabalhos chamando a advogada da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos. Leslie Carusso participa, em Belém, do Fórum Paraense em Defesa das Rádios Comunitárias e defende vários militantes, multados ou processados por crimes previstos na legislação que regulamenta a radiodifusão brasileira. Completa a mesa a jornalista Rosane, que estuda as rádios comunitárias do Pará para um trabalho de doutorado e explica aos líderes comunitários um pouco do que sabem os teóricos da sociologia da comunicação sobre o fenômeno responsável hoje por quase 40% de toda a radiodifusão brasileira.
Leslie veio a convite da Secretaria de Comunicação do Governo do Pará. Rosane veio por conta própria, como voluntária.
“O Encontro tem o objetivo de pôr em contato as experiências das rádios da região com o pessoal que trabalha no Fórum em Belém para que a gente possa trocar idéias e buscar alternativas para a nossa luta”, explica Arildo, que ajudou a fundar, há dez anos, a rádio comunitária Popular FM, de Brasil Novo, a 46 quilômetros de Altamira, que ganhou este ano a sua concessão de operação da Anatel depois de 10 anos de batalha judicial e burocrática.
Desde que saiu da Popular FM, Arildo se dedica ao fortalecimento das rádios da
região, criando uma rede de associações comunitárias que usam as rádios como instrumento de fortalecimento da cidadania e de conscientização política. Ocupadas democraticamente por igrejas de todas as procedências e movimentos sociais ou políticos, hoje já são 14 rádios atuantes na região. Duas estão em Medicilândia, a 90 quilômetros de Altamira, e, as outras, em Brasil Novo , Rurópolis, Placas, Pacajá, Porto de Moz, Senador José Porfírio, Vitória do Xingu, Uruará, Gurupá, Belo Monte, Anapu e Altamira. Oito delas já conseguiram a concessão da Anatel para operarem legalmente. As demais estão em processo de legalização, e mesmo com os processos avançados, até o início do ano, contrariando declarações do presidente Lula, era comum operações conjuntas com a Polícia Federal de fechamento de rádios comunitárias, algumas vezes patrocinadas por empresários e políticos da região. A última operação tirou do ar, a rádio de Anapu, cidade conhecida pela atuação da freira americana Dorothy Stang, onde os movimentos sociais são reprimidos pela política de coronelismo e pela ação de alguns fazendeiros.
Mas a rádio de Anapu não deve ficar muito tempo fora do ar. Há alguns anos, o movimento de rádios comunitárias da Transamazônica e do Xingu decidiu, conscientemente, desrespeitar a lei de radiodifusão. Toda vez que alguma rádio é fechada ou tem seus equipamentos apreendidos logo há uma mobilização para reativá-la. “A própria comunidade pede para reabrir a rádio. Em alguns municípios a rádio comunitária é a única que existe e o único meio de informação sobre as questões da região, que interessam aos moradores”, explica Arildo.
Há quatro anos as rádios ganharam um reforço, dado sem querer pelos mesmos que exploram a floresta e a mão-de-obra da região. Em 2003, o Ibama apreendeu seis mil toras de mogno ilegal e o doou para os movimentos sociais da Transamazônica e Xingu, com o consentimento do Ministério Público Federal. A madeira é beneficiada e comercializada através de um consórcio de entidades formado pela FASE, a Fundação Viver, Produzir e Preservar (FVPP) e a Prelazia do Xingu, e já rendeu mais R$ 5 milhões para o Fundo Dema, um fundo permanente que financia projetos de desenvolvimento sustentável. Entre eles, estão projetos de comunicação comunitária que incluem as rádios. Assim, a maioria delas tem se estruturado e tem conseguido vencer a burocracia do Ministério das Comunicações, contratando um advogado para sanar as pendências que surgem a toda hora no processo de legalização das rádios. “Quando eles (da Anatel) vão nas rádios para fecha-las, a gente diz que a culpa é deles, que nós estamos fazendo a nossa parte. Falta o governo fazer a parte dele, acelerando o processo de liberação”, conta Arildo.
Mesmo com os avanços das rádios do Xingu e da Transamazônica, o Encontro é marcado por queixas e lamentações. Darci Costa Lima, borracheiro e evangélico da Assembléia de Deus, é diretor da Rádio Floresta FM, que fica na zona rural de Medicilândia. Depois de ter sido fechada no ano passado pela Anatel, a rádio teve todos os equipamentos novos queimados pela queda de um raio. “As dificuldades desestimulam a comunidade. A gente precisa da participação popular e comunitária, e sempre que uma operação chega fechando tudo, com carros e policiais federais, o povo fica amedrontado, diz que não vai mais fazer esse negócio de rádio comunitária, que não quer ser preso etc”, explica ele.
Luci Costa, da Rádio Fuso Horário FM, de Placas, diz que o trabalho tem momento de desânimo, mas sempre tem alguém “que surge e que a gente espera que possa dar continuidade ao trabalho”.
A partir do Encontro Regional, e estimulado pela política da Secretaria de Comunicação do Governo do Pará, o movimento de rádios comunitárias espera superar seus desafios históricos no estado. Desde que assumiu o governo em 2007, o Partido dos Trabalhadores descentralizou as verbas de publicidade, que migravam basicamente para os dois principais grupos empresarias de comunicação do Estado, e começou a estimular ações de comunicação popular. No mês de agosto, o governo lança seu primeiro edital de projetos de comunicação para a cidadania e assina um convênio com a SPDDH, para capacitar e dar assessoria jurídica e técnica às rádios comunitárias em quatro pólos, incluindo Altamira.
A verba de publicidade do estado agora também pode ser aplicada, na forma de apoio cultural, nas rádios comunitárias legalmente constituídas. “Como a rádio comunitária é, em alguns municípios, o único e mais eficiente meio de comunicação, o governo precisa delas para difundir campanhas educativas e informativas. Ela trabalha também como instrumento mobilizador, convocando a população à participação democrática, e ajudando, assim, a ampliar e fortalecer a esfera pública, prejudicada pelo coronelismo e pela comunicação oligárquica dos grandes veículos familiares de comunicação”, explica José Luiz Miranda, assessor da diretoria de comunicação popular da Secom.
“A gente ainda não sabe como vai ser o nosso futuro porque os desafios continuam sendo muito grandes. Mas a gente espera poder criar uma rede em que possa integrar as informações comuns a todos esses municípios. Precisamos também fortalecer a participação comunitária e capacitar o pessoal que trabalha nas rádios para que eles possam saber realmente como funciona uma rádio comunitária. Como nós nunca tivemos capacitação em comunicação, o que a gente tem de modelo são as rádios comerciais”, explica Arildo.

Um comentário:

Anônimo disse...

pena que 99% da população não teve assesso a esta matéria,muito bom... tenho 27 anos moro em brasil novo, vicinal da 16, sem perspectiva alguma.Sem comunicação costumavamos irmos para encontros de jovens e depois iamos ouvir no radinho de pilha, fitas do Raul, Legião, cazuza,Ze ramalho. a conquista da radio popular fm, foi uma das maiores deste minicípio